Mártir vs Malandro

Tive uma breve crise existencial (digo breve porque não passou de uma reflexão pertinente), onde eu me vi em uma encruzilhada. 

Eu estava lendo o livro "Grande Magia - Vida Criativa Sem Medo" de Elizabeth Gilbert, na verdade eu estava praticamente desistindo de ler este livro, porque meu ponto de vista sobre a arte tem algumas divergências com a visão enfática da autora, mas resolvi que terminaria o livro para extrair dele tudo o que me fosse útil, e acabou que o último quarto do livro foi realmente o que me agregou. E, inclusive foi o ponto de partida para esta reflexão.  

Em um capítulo intitulado "O Mártir x O Malandro" temos uma explicação comparativa de que escolher uma vida criativa baseada em conflitos e sofrimento é um caminho de "mártir" que glorifica a honra e a dignidade do artista, mas o aprisiona em uma mentalidade doente de alguém fadado a uma vida triste, enquanto o posicionamento de alguém "malandro" funciona como a contraparte desse esteriótipo, e no caso o artista busca não cultivar dramas e se aprofundar em suas implicações, mas se desvencilhar dos problemas, tomando uma atitude mais positiva e leve, não tomando para si a responsabilidade de resolver os dilemas que surgem como um peso, mas lidar com eles como pode, e se possível extrair o que puder em seu próprio benefício. Ou seja, um caminho altruísta, pautato em um ideal de heroísmo versus um caminho mais egocêntrico, pautado em aproveitar a vida de forma descontraída.

Eu confesso que sempre estive dando mais passos de mártir do que de malandro, escolhendo ser alguém que segue princípios de generosidade, altruísmo e principalmente, acredita que isso é o certo.

Então, tive que analisar esse caminho do malandro, coisa que eu nunca pensei como algo de valor, na verdade pensar em uma postura de malandragem sempre me pareceu algo medíocre e sem propósito, já que geralmente só visa trazer benefício a si mesmo. Mas, aí é que está a questão! Eu sempre tive uma tendência de baixa estima, então era natural para mim pensar nos outros acima das minhas vontades, e talvez por isso, no meu passado, acabei me apegando a uma romantização do mártir, acreditando que isso era ser alguém digno de verdade.

E, ontem vi alguns vídeos sobre a Cabala Ancestral (recomendo esta playlist do canal Academia da Cabala), eu sou no momento apenas uma curiosa sobre esse assunto, mas é dito que a Cabala não esteve, e nem está vinculada a nenhuma religião, Cabala significa "receber", e todo o seu conhecimento serve justamente ao propósito de nos mostrar como podemos nos prepapar para receber tudo o que já está destinado a nós, ou seja, Deus, o Divino, ou como queira chamar, já criou tudo no espaço-tempo, e se passamos por alguma dificuldade ou provação isso serve simplesmente para nos ensinar algo que precisamos saber para receber tudo o que desejamos, pois não existe um Salvador para nos resgatar dos sofrimentos, somos nós mesmos os agentes dos milagres na nossa vida. E, a única verdade é que Tudo é Luz, e se Tudo é Luz não existe o Bom ou Ruim, toda a separatividade é uma ilusão criada para que possamos passar pela experimentação do despertar da potência divina em nós. 

Mas, se Tudo é Luz e só precisamos aceitar a realidade com confiança no Poder Divino que age através de nós, então ninguém além de nós mesmos pode nos libertar. 

E, nesse caso se você entende isso, fica claro que o caminho do mártir é bem desvirtuado se pensado de forma superficial, na verdade desta forma é um caminho ilusório de alienação. E, se pensarmos em alienação na história da humanidade, percebemos como esse arquétipo de herói e salvador foi usado para manipular a mente de muitas pessoas. Pois, viver em uma realidade onde nos perdemos em sofrimento e desejamos um salvador, ou se nos concientizamos de fazermos nós mesmos o papel de salvador, é claramente difundido que acabamos morrendo pela causa. Então, me parece bem óbvio que criar essa mentalidade pode trazer um consentimento em massa de que não podemos ser felizes, não vencemos, não temos nenhum poder real sobre nossas vidas e, se ousarmos fazer algo acabamos mortos provavelmente das piores formas possíveis. Além disso, o heroísmo sendo apresentado desta forma, para um contexto de dominação, atua muito no aspecto emocional, onde o mecanismo de manipulação funciona muito mais facilmente, e nisso parece que se tem o controle perfeito, pois até mesmo o sujeito mais equilibrado emocionalmente (talvez que possui apenas gatilhos emocionais vinculados a ideais de justiça) e consequentemente tende a ser alguém menos sucestível a distrações superficiais, pode ser sugestionado para travar lutas vazias.

Mas, esta dominação só alcança até certas dimensões do nosso ser, portanto, os verdadeiros heróis, os poucos que realmente enxergaram a verdade e tiveram coragem para ir contra a maioria e fazer a diferença, foram indivíduos livres da possibilidade de qualquer sugestionamento. Mas, mesmo que esses seres tenham se fortalecido com Potência Divina ao ponto de iluminarem um pedaço da nossa história, isso não significa que eles sofreram exatamente como imaginamos, na verdade eu acredito que estar neste nível de consciência dá amparo para suportar coisas inimagináveis, eles ainda em vida se uniram à soberana Potência da Imortalidade.

Acho que o maior exemplo que posso dar sobre isso está na figura de Jesus, pois acredito que sua história foi desfigurada para o contexto de dominação da Igreja ao longo dos séculos, mas ele, assim como tantos outros foi um ser que tentou nos mostrar que, ninguém além de nós mesmo tem o poder de alcançar a Divindade, e neste ponto não estou falando do Deus Cristão, que nos pede temor em uma vida cercada pela culpabilidade e opressão mental, estou falando da Fonte Divina que não se importa nem como é chamada ( e ela pode se apresentar com muitos nomes diferentes), pois não julga sua própria Criação. 

Neste texto de Khalil Gibran esta distorção é abordada pontualmente:

"A humanidade é uma mulher que se deleita em se lamentar pelos heróis dos séculos. Se fosse homem regozijar-se-ia pela sua grandeza e suas glórias. A humanidade vê Jesus o Nazareno nascendo e vivendo como um pobre, ofendido como um fraco, crucificado como um criminoso, e chora-o e lamenta-o. E é tudo o que ela faz.

Desde há dezenove séculos, adoram a fraqueza na pessoa de Jesus, conquanto Jesus fosse um forte. Mas, eles não compreendem o sentido da verdadeira força.

Jesus não viveu como covarde, nem morreu sofrendo e queixando-se. Viveu como um revolucionário, e foi crucificado como um rebelde, e morreu como um herói."

                                                 ("Parábolas" Jesus crucificado - Khalil Gibran)

Dito isso, acredito que existe um ponto de sincronia desses dois arquétipos, para que de fato alcancem seu máximo potencial na existência, pois é apenas por uma abordagem de genuína malandragem que alguém pode exercer o papel de um revolucionário. Sem coragem para ousar ir contra o status quo e ser esperto para manter esta postura neste caminho desafiador, não se atinge o ápice da transformação incumbida ao ideal do Mártir, não se inflama a realidade para acender o fogo da verdade, não se torna um herói no final das contas.

Inclusive no Tarot, isso é bem apresentado pela carta de autonomia e transformação da realidade, a carta do Mago. Em versões antigas este arcano era considerado um malandro, um ilusionista de rua, com sua banquinha cheia de objetos para trapaça. E, este aspecto ainda é considerado na carta como um simbolismo de manipulação, mas o mais incrível disso, é que ele é um trapaceiro mas, ao mesmo tempo, é o sujeito que canaliza as forças do Universo para manifestá-las de acordo com a sua vontade na realidade prática.

Então, assim como energias opostas tendem a se combinarem na Criação, tomando medidas de equilíbrio para melhor atuarem em nossa realidade, creio que o mesmo aconteça com esses arquétipos. Não devemos abdicar de nenhum deles, devemos usar sabiamente os aspectos úteis de cada um, o mártir trás o senso de Unidade com todos, e consequentemente nos impele a agir pensando além do nosso próprio umbigo, já o malandro trás a estratégia e a leveza para não nos aprisionarmos nos dilemas que surgem, e o principal, trás o empoderamento real, a autonomia para fazermos algo pela nossa vida de forma a de fato vivenciarmos esses benefícios, e inspirarmos os outros a fazerem o mesmo.

A dignidade de ser um mártir/malandro é reconhecer o nosso potencial e fazer o nosso melhor para primeiramente tornar a nossa vida melhor, e em sequência extender isso fazendo algo também pelo próximo, pois a alegria de viver plenamente não esta apenas na independência, mas em toda a experimentação da vida, e isso obviamente inclui relacionar-se com as outras pessoas e com o próprio mundo. Valorizar apenas o mártir trás a alienação movida pelo sofrimento na crença do sacrifício, e buscar ser apenas um malandro nos leva a não se importar com ninguém, sermos predominantemente egoístas, manipuladores intolerantes e até cruéis. 

Então, esta encruzilhada me mostrou um jeito diferente de andar, um passo lá e um passo cá, ambos na hora certa, com a postura que melhor se aplica para avançar. E, tiro como lição deste assunto, que se me deparo com uma dualidade que é apresentada no comparativo de certo e errado, como foi no caso do Livro "Grande Magia", onde a autora quis colocar a abordagem do malandro como solução para uma vida artística, é melhor usar o discernimento e tentar encontrar os pontos de equilíbrio em cada oposição. 

Sem equilíbrio não conseguimos enxergar a verdade de que Tudo é Luz, isso acontece quando cada energia assume seu verdadeiro papel em nossa existência, e não permitimos que dominem nossa realidade tomando proporções desvirtuadas, como uma crença limitadora.

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